Como comecar o
relato de um dia completo pela savana africana, estranha aos
olhos de quem esta mais habituado a uma cidade? Bom, para ser sincero, logo
apos a minha viagem, o cansaco ditava que o texto incorporaria um parco fui,
andei por la e voltei, esperando que as fotografias completassem o que ficou
por dizer. Mandou o bom senso que esperasse, confiando que um outro dia me
trouxesse as palavras certas que certamente iriam enriquecer a legenda das
imagens presas na lente da maquina fotografica. Como esse dia nao
chegou, decidi apenas contar aquilo que recordo, ainda que aos tropecoes.
Foi num domingo
destes que decidi que era dia de finalmente realizar o tal safari que muito
alimentava o meu imaginario desde que cheguei a Tanzania. Como o meu tempo
livre peca sempre por escasso, a minha opcao de visita caiu sobre o parque
nacional de Mikumi uma vez que a sua distancia a Dar es Salaam (cifrada em
cerca de trezentos quilometros) se torna alcancavel por estrada no proprio dia,
considerando tambem o regresso. O plano passava (e passou) por sair da cidade
pela madrugada de domingo, chegar de manha, ver o maximo que o tempo me
permitisse e voltar ja de noite. E assim foi, deitei-me a meia noite e as duas
da manha estava a levantar-me. Vieram buscar-me e fizemos direccao a Morogoro
pela noite fora. Tendo em conta a escuridao e o sono nao houve nada a contar
ate que comecou a chuva: um rio caiu do ceu e a estrada tornou-se apenas visivel
com os frequentes relampagos. Camioes e outros veiculos despistados comecaram a
abundar pelas bermas escavadas por torrentes de agua. Estranhamente, o condutor
do carro nao parecia nada afectado, o que ate me tranquilizava, apenas ate ao
momento em que lhe gritei ja em cima de uma lomba. O carro voou por uns
instantes e aterrou no asfalto. A estrada continua invisivel aos meus olhos
enquanto o diluvio prossegue, ate que de repente abranda, e por fim cessa por
completo. Assim sem mais nem menos. Eram seis da manha e comecava a amanhecer.
A agua desaparecia das estradas a chegada a Morogoro – dai faltavam apenas uns
oitenta quilometros ate a entrada de Mikumi. Sem mais sobressaltos la chegamos
saos e salvos.
Eram oito da manha
e eu informava-me dos precos a entrada. Um grupo formado exclusivamente por
umas miudas europeias, quase todas loirinhas e com ares de nordicas, prepara-se
tambem para entrar. Elas repartem-se por dois jipes alugados para o efeito e eu
sou convidado a ir com elas. O meu condutor risse quando eu lhe digo que todos
temos prioridades e que a minha de momento nao era a caca nem sequer a observacao dos
animais: o pequeno almoco pareceu-me entao essencial. Compro a entrada no
parque e a experiencia de um guia que nos acompanhara durante a viagem. Apos
ter satisfeito a vontade do meu estomago, comeca finalmente o tal safari.
Apanhamos o guia, uma moca local nos seus vintes, com escasso dominio do ingles
falado. Pergunto-lhe logo que animais e’ que vamos ver ao que ela responde que
depende: impalas, girafas, elefantes e muitos mais. Eu digo-lhe que quero ver
os leoes porque tenho intencoes de levar um para casa no banco de tras do carro.
O condutor risse mas ela responde que ver leoes so com sorte. Acrescenta ainda,
muito seria, que e’ impossivel levar leoes para casa. Para mim, era so uma
questao de saber convence-los mas enfim, ela e’ que e’ a guia, portanto assumo
que ela deve saber do que fala. Ainda so tinhamos percorrido uns trezentos
metros e ja eu dava de caras com uns bufalos. A guia comeca this is the bufallo, he eats grass. Eu, muito
espantado, pergunto-lhe se de vez em quando tambem nao comem uns bifes. O
condutor risse. Ela acho que nao percebeu. Logo de seguida surgem as impalas. This is the impala, he eats grass.
Comeco a achar que esta guia representa os dez dolares mais bem gastos da
minha vida. Avistamos
uns gnus ao longe. This is the wildebeest,
he eats grass. Mais valia darem uma cassete a entrada
do parque pensava eu. Pelo caminho observam-se varias especies de aves, mais
impalas, outras especies de aves, muitos mais impalas. This is an impala, he eats grass. This is a bird, he eats insects. Nao sei os
nomes das aves mas ela tambem nao. A partir dai comeco a chamar tudo de perus
ou galinhas, consoante o tamanho – acho que desta vez ela achou piada. Mas leoes
nem ve-los. Ocorreu-me que se empurrasse a guia para fora do carro talvez eles
aparecessem. Ai queria ver o que ela dizia. Avista-se ao longe um lago –
paramos la perto e saimos do carro. Uns quatro ou cinco hipopotamos boiam
tranquilamente uns em cima dos outros no centro do lago. This is the hippo, he eats grass. Instrutivo, sem duvida alguma –
tecnicamente sempre correcta e nao lhe escapa nada. Mais a frente encontra-se um outro lago,
apeamo-nos novamente e nada de hipopotamos. A guia diz-me que naquele lago ha
e’ crocodilos. Pergunto-lhe se tambem comem a ervinha. No! The crocodile eats meat. Vivendo e aprendendo. Procuro e nada,
crocodilos nem ve-los. Entretanto o motorista, sempre bem humorado, diz-me ainda
entre gargalhadas para nao me chegar muito perto da borda do lago porque com os
crocodilos nunca se sabe – podem estar bem perto sem que se vislumbrem.
Parece-me uma informacao bastante util, talvez a melhor ate ao momento.
Voltamos ao carro e continuamos pelo trilho ate que finalmente... This is the lions! E la estavam eles,
dois machos deitados bastante perto do trilho. He eats meet. Digo a guia que por acaso essa ja sabia, para ela nao
ficar a pensar que sou algum ignorante. O condutor, enquanto se vai rindo,
aproxima o carro dos animais mas eles, apesar de ja terem dado conta da nossa
presenca nem se levantam. Devem ter estado a comer recentemente e nem se mexem.
Estava a espera de mais qualquer coisa para ser sincero. Isto e’ como pagar
para ver os palhacos e nos levarem a assembleia da republica – pode ser
parecido mas nao deixa de ser decepcionante. De repente, chega um jipe
carregado de miudas loirinhas com ar de nordicas – devem ser do mesmo grupo que
conheci na entrada e antes que me apercebesse ja havia um outro jipe cheio de
indianos em cima de nos. E mais outro ainda a chegar. Pior que que o algarve em
agosto, nao ha duvida. Digo para seguir caminho. De qualquer das formas estes
tais de leoes estarem ali ou nao estarem era quase igual. Mais a frente
avistamos uma girafa que com medo se poe em fuga, infelizmente sempre pelo
nosso caminho ate que finalmente encontra mato mais denso. This is the girafe. He eats grass. Continua a viagem. Avistamos
agora grupos de animais de varias especies. This
is the zebra and the impalas. They eat grass. They are animal friends.
Digo-lhe em jeito de gracola que os leoes tambem devem ser amigos, ja que os
tinha visto muitas vezes na televisao a correr atras deles. Ela diz que nao.
Surgem finalmente os elefantes. O condutor diz-me que com os elefantes e’ que
convem guardar uma certa distancia porque, quando se sentem ameacados, podem
investir contra o carro. Nao nos chegamos portanto muito perto mas ha um deles
que se aproxima mais, quase que parece que veio de proposito para eu lhe tirar
uma fotografia – que animal estupendo. The
elephant eats grass. Ao longe o resto da manada segue o seu rumo e este meu
recente amigo diz-me adeus e junta-se a eles, depois de ter estado calmamente a
comer umas ervas tao perto de nos (de resto, a confirmar que a guia sabe do que
estava a falar). Foi um excelente momento. Muito melhor que o dos leoes que so
sabem estar deitados. Dai para a frente foi um pouco o mais do mesmo. Um
desfile de imensos animais das especies ja referidos. De referir que tambem vi
uns urubus (acho que eram urubus). Volta e meia tento sair do carro para tirar
fotografias mas tendo em conta que ha leoes nas redondezas e que eles atacam
por embuscada e’-me negado esse previlegio. A seu tempo o carro para a pedido
da guia – ela sai, caminha uns bons vinte metros e eu, meio aparvalhado, penso se
os leoes tambem respeitam as zebras quando elas estao nos lavabos. Sai do carro
e faco o mesmo. Se os leoes forem todos como aqueles que vi antes bem que posso
estar a mijar-lhes para cima que eles nem se chegam para o lado.
A viagem ate a
saida do parque torna-se bem mais monotona. O cansaco comeca tambem a abater-se
pela falta de dormida na noite anterior. Passamos novamente pelos leoes, que se
encontram exactamente no mesmo sitio que horas antes. O condutor desta vez
tenta passar ainda mais perto deles e sai do trilho, confiando no seu veiculo
de traccao dianteira. O carro perde um pouco de traccao na erva mas la
contornamos os leoes a cerca de um metro de distancia. Fecho o vidro da janela
quando um deles se levanta – nao va entrar alguma mosca. Voltamos ao trilho e
uns tipos de outro jipe fazem o mesmo. Os leoes agora parecem ja nao achar
muita graca. Levantam-se os dois, andam cerca de dois metros e deitam-se outra
vez. E’ o rei da selva, sem duvida. Chegamos finalmente ao ponto de partida.
Despeco-me da guia e agradeco-lhe o tempo dispendido com uma gorgeta generosa.
E’ hora de me fazer de novo a estrada de alcatrao. Dar es Salaam ainda esta a
quase cinco horas de distancia. Ainda pelo caminho avistam-se muitos macacos
pelas bermas da estrada. Sao engracados mas prefiro nao parar. Sao daqueles que
tem os dentes muito grandes.