domingo, 25 de novembro de 2007

Primeiro raio de sol, com cheiro a petróleo

Eram não sei que horas do principio de uma noite passada quando recomeçaram a furar. A rocha atravessada pelas poderosas e impiedosas ferramentas metálicas chega à superficie, transportada pela lama injectada no furo, já cansada e transformada numa soma milimétrica do todo que foi outrora. A profundidade, a cerca de 1300 metros, coincide com a zona decretada como produtiva em hidrocarbonetos e, como tal, é também produtiva em grandes expectativas. Por isso, há conveniência em conduzir uma operacão de furação um pouco diferente, com recuperacão de amostra directamente do fundo do furo: o coring. Isto implica basicamente o posicionamento de um grande tubo de aluminio (ou PVC) no interior de uma outra tubagem de liga metálica, imediatamente comunicante com a ferramenta cortante (o bit). À medida que o bit se desloca em profundidade, os cerca de 18 metros de tubo interior são inundados pela amostra recém cortada, onde esta permanece, inalterada e imóvel, até ser transportada e exposta na superficie. Depois da primeira tentativa fracassada no dia anterior, o segundo coring é bem sucedido e apresenta-se à superficie já pela madrugada adentro. Obtém-se a totalidade de recuperação de amostra (os tais 18m) e o odor oleoso não engana; a rocha, mortalmente trespassada, ainda sangra um pouco de petróleo pela extremidade do tubo. Os primeiros raios de sol chegam finalmente e a rocha, qual esponja embebida em óleo, torna-se ainda mais pesada de brilho, quase de metal precioso. E a luz nos olhos das pessoas também é diferente. Por isso, baixo os olhos em pesar e contemplação.

[Embora já tenha assistido a esta operação no passado, ocorrem-me sempre nestes momentos algumas interrogações retóricas acerca do como este fluido sujo e gorduroso possa ser a vitalidade da civilização e se encontrar logo aqui, debaixo deste triste e solitário deserto, quase esquecido. Vivemos com esta energia fóssil numa simbiose na qual somos nós os parasitas e, no entanto, é amplamente sabido que na natureza, poucos são os parasitas que sobrevivem à morte do hospedeiro. As consequências do anunciado esgotamento desta energia já se estão a sentir mas continua a ser preferido o debate de ideias à implementação de acções. Ocorre-me também que o senhor Bush afinal não deve ser assim tão parvo como o pintam, apesar dos muitos comentários sem nexo (e estúpidos vá) que produz. Ao fim ao cabo, anda mais de meio mundo a aumentar a extracção do petróleo, já que o barril nunca foi vendido a tão alto preço, enquanto que os amigos dos USA fazem uns quantos furos que asseguram o seu consumo interno. O resto da sua reserva está por explorar. E o futuro é já amanhã. Talvez ainda seja possivel amplificar a produção das ditas energias alternativas. Ou esperar mais tempo para ver o que realmente acontece. Ou produzir um motor movido a água salgada (...ou a bananas). Ou... sei lá. Mas sei que o petróleo vai acabar um dia e que o relógio não pára.]

Apesar de possuir ideias algo concretas, mas raramente estáticas, acerca do petróleo enquanto alimento de uma civilização dependente e esfomeada por energia, não consigo deixar de me apoderar deste brilho que escorre do calcário no interior do tubo. O brilho forte e o odor inebriante afinal de contas são o poder e o sucesso. Apesar de se ter atingido um pequeno reservatório, olho à minha volta e há um deserto quieto a acordar, que se estende até onde a minha vista alcança, em todas as direcções, e muito mais além. Devo ter sorrido de ironia. O que está debaixo dele é que conta. Tudo o resto não deve interessar para nada. Tudo está bem e até me lembro de uma música do SG, de dias felizes e vou-me embora com um brilhosinho nos olhos. Passa das 9h e a noite foi longa e trabalhosa. Vou dormir. Já devo é de estar cansado.




O core à superficie, no momento em que foi aberto.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

WOC

É a abreviatura usada para “Wait On Cement”. Consiste exactamente no periodo de espera que o cimento bombeado no poço necessita para endurecer, requisito indispensável à passagem para uma nova etapa de furação. Para mim significa “tempo morto com ausência de qualquer tipo de produtividade”. Por outras palavras, não faço rigorosamente nada, o que poderia ser bom, mas na verdade até se torna aborrecido, uma vez que tenho que estar à mesma na unidade de trabalho, fazendo o mesmo horário das 18h às 6h. É nesta fase em que me encontro. O meu humor oscila entre o contentamento por não ter trabalho de laboratório e o transtorno por ter tempo livre sem uma ocupação interessante onde o usar. Quando o minesweeper deixa de ser um fiel amigo e se recusa a colaborar no processo de superar o meu anterior record, sei que estou em dificuldades. A mente comeca a vaguear no espaço obscuro e encontra rapidamente o caminho de casa e de todas as coisas boas (e más tambem) que por lá acontecem. Ainda nem cheguei a meio da campanha e as saudades já se sentem. Posso sempre alegrar-me com o pensamento de que amanhã é outro dia e será, por certo, bem mais trabalhoso que o de hoje, com bocadinhos de rocha dilacerada e esventrada do fundo do furo, para analisar e identificar. Ainda nos arriscamos a encontrar petróleo ou qualquer coisa parecida... Até foi para isso que vim e acaba por ser assim que o tempo passa mais depressa, a trabalhar. Vida de geólogo; é como a vida de marinheiro mas no deserto. No entanto, desde que cheguei, peixe ainda não foi opção disponivel na ementa (malta da cozinha: mais atenção). Neste caso, o conceito de vida de marinheiro não será extensivel ao peixinho.
Enfim é muito bom ter umas pausas pelo meio do trabalho, desde que não sejam exageradamente demoradas. A instalação de um clima de apatia e ócio não é indicada à vida no deserto, por si só, já tão despido de actividade.

Vou ali fazer qualquer coisa.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Viagens da minha vida

A viagem até nem foi má. Só houve alguns percalços que a tornou ainda pior. A constipação não ajudou a minha disposicão e terá, pelo contrário, incendiado a minha irritação com os sucessivos atrasos nos voos. Estes, foram provavelmente os responsáveis por ter chegado a Tripoli sem a minha mala. Salve-se a minha capacidade de antever catástrofes e viajar com alguma roupa na minha inseparável mochila. Fico mais tempo no aeroporto com a dificil missão de tratar dos formulários necessários ao resgate dos meus haveres. O obstáculo da comunicacão é facilmente ultrapassado quando requisito o motorista encarregue do meu transporte para tratar do assunto, ficando apenas a faltar o despacho da fila de pessoas que se encontrava pela minha frente, com um problema semelhante ao meu. Terminados estes deliciosos momentos de tertulia, com total ausência de regozijo pessoal, lá nos tivemos que pôr a caminho para a deserta base da empresa no centro de Tripoli, de onde trouxe emprestados alguns bens essenciais à minha sobrevivência e aguardei cerca de uma hora até à chegada do meu outro transporte para o poço onde fui destacado. Choveu bastante nesse dia e algumas estradas encontram-se alagadas, o que me faz temer pela minha segurança, tendo em conta as velocidades praticadas por estes condutores (como chamar-lhes…?) assassinos. Este último trajecto não tem muita historia, tirando talvez o pequeno-almoco, à base da sandocha de figado de borrego, bem carregada de picante. Bem bom. Parece-me que aqui isto é uma espécie da bifana que se come na roulote em Portugal. Chego ao meu destino às 11h, exactamente 24h depois de ter saído de casa, onde sou recebido por caras conhecidas que me dão algum alento para iniciar o trabalho às 18h.

Agora faço o turno da noite e até nem desgosto. Parece-me bastante mais tranquilo que o dia e penso que só me posso queixar do frio que se faz sentir. A temperatura chega a ser menor que 10°C e até a alma se sente fria. Ou os ossos, já não sei. Contudo, o processo das continuas noitadas em Lisboa finalmente tem resultados práticos visto que a adaptacão ao horário nocturno não foi dificil. Só custa mesmo dormir durante o dia quando sou confrontado com situações de falatório perto do meu quarto. Entretanto, a minha mala já me foi enviada, o que me trouxe algum conforto, apesar de ter acessos de pensamentos menos bons para com o senhor sorridente da Alitália em Portugal, sempre que olho para ela. Sou responsável pelos meus actos e pelas minhas palavras, por isso, tentarei, com muito afinco, não ser obrigado a responder por ambos, da próxima vez que o encontrar.

O nascer do sol já não significa o começo do meu dia de trabalho. Saúda antes o dever cumprido e o descanso. E, embora não tão quente como no passado, que sol este, o do deserto…

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Havia este de me fazer rir...

Depois de um mês sem publicar, inicia-se um Novembro prometedor a muitos níveis. A viagem está próxima e o vento começa a soprar numa direcção, seja ela a certa ou a errada, agora não estou preocupado com isso. Muitas vezes a viagem é mais importante que o destino mas no meu caso... só espero que a viagem não seja muito longa. Vou ver o que o vento me traz.

Hoje trouxe-me este senhor incorrigível, a quem faço questão de dar voz aqui no meu espaço. Porque me apeteceu. Para ser diferente de tudo o que já tenho aqui publicado. E porque o rapaz até é engraçado (mais do que eu ainda). E porque todos precisamos de nos rir de vez em quando...

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Dia dos mortos (...e dos meio-mortos/vivos)

Por muito interessante que tenha sido Outubro, ao que parece, não o foi o suficiente para que a minha atenção se tenha dirigido para este espaço. Ou então não teve mesmo interesse.
Começa então o Novembro do meu contentamento. Vem aí o trabalho. Dia 5 voo para a Líbia uma vez mais. Desta vez reservaram-me mais uma surpresa: vou a Milão, depois a Roma, onde finalmente sou remetido ao meu destino (quase) final: Tripoli (onde espero chegar com as bagagens todas). O plano que me fez ficar em casa um mês a mais que o normal deve ter corrido mal uma vez que já não vou para offshore. A plataforma ainda estava a ser rebocada para o largo da Líbia no princípio de Outubro e, ao que consta, ainda não está a laborar. Ao menos estive dois meses em casa. Para já contam-me que vou para o meio do deserto outra vez, a cerca de 50km do poço onde já tinha estado da última vez. Quando lá chegar saberei com certeza.
Espero voltar a tempo do natal e da passagem de ano, a menos que tenha que ficar lá mais tempo que o habitual, o que seria naturalmente chato e, por que não, aborrecido. O natal dos hospitais só deve passar mesmo na televisão portuguesa. O que é de mim se não estou cá…

Adicionei recentemente neste espaço um novo elemento designado Outras Olhadelas, onde figura uma listagem de sítios na blogosfera pertencentes a amigos que visito regularmente. Como ainda estou assim um pouco verdinho nas lides deste mundo confesso que não tenho visitado muita coisa fora do círculo das amizades que, por acaso, tendem a pertencer a um outro mundo complexo e misterioso (o dos geólogos).

Espero ter net no deserto para partilhar uma história ou duas. Mais do que isso, espero ter uma história ou duas para partilhar… se tiver net, está claro.